Norma médica que impede uma mulher de ajudar sua própria irmã a ser mãe limita desproporcionalmente o direito ao planejamento familiar, criando obstáculo sem razão para a realização do sonho da maternidade.
Com o entendimento, a 1ª Vara Federal de Bento Gonçalves garantiu o direito de doação de óvulos de uma mulher para a irmã. Elas não conseguiram fazer o procedimento médico em função da Resolução 2.121/2015, editada pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), que proíbe a doadores e receptores de gametas e embriões conhecer a identidade um do outro. A sentença, publicada no mês passado, é do juiz Eduardo Kahler Ribeiro.
Em novembro de 2018, duas irmãs ingressaram com ação contra o Cremers (Conselho Regional de Medicina do RS), narrando que uma delas já tinha tentado todas as técnicas de fertilização sem conseguir sucesso. Disseram ainda que a que precisa receber o óvulo recebeu o diagnóstico de infertilidade sem causa aparente, o que provocou grande abalo emocional. As autoras salientaram a possibilidade de doação de óvulos de uma delas à outra.
Em sua defesa, o Cremers pontuou que, no Brasil, ainda não há legislação tratando da reprodução assistida e, em função de tal lacuna, o CFM editou norma em defesa dos princípios éticos e bioéticos. A determinação de que os doadores de gametas ou embriões não conheçam a identidade dos receptores, e vice-versa, visa à segurança da própria paciente e procura evitar questionamentos acerca da filiação biológica da criança. Sustentou que a ruptura do anonimato pode levar a transtornos legais, emocionais e psicológicos entre todos os envolvidos.
Flexibilização do anonimato
Ao analisar os autos, o juiz federal substituto Eduardo Kahler Ribeiro explicou que a justificativa da regra é impedir disputas futuras pela paternidade/maternidade das crianças geradas pela técnica, o que poderia desestabilizar o bem-estar das relações familiares. Não haveria, então, impeditivos ligados à saúde física das envolvidas no procedimento ou para o bebê que pode ser gerado dele.
O magistrado concluiu que o alvo da norma são as relações sociais e culturais que sustentam o conceito de família a partir de determinados laços biológicos, o que possibilita, segundo ele, o questionamento acerca da atualidade de tais parâmetros. “A propósito, o anonimato vem sendo flexibilizado em diversos países, nos quais se autoriza o conhecimento da identidade do doador de material genético a partir da consideração do bem-estar das crianças nascidas, a quem se outorga o direito de saber sobre a sua origem biológica”, ressaltou.
Para Ribeiro, os procedimentos e técnicas de reprodução assistida se inserem no direito ao planejamento familiar, que é fruto da autonomia do casal. Ele destacou que a autora comprovou que se submeteu, com insucesso, a várias técnicas para engravidar, como inseminações artificiais e ciclos de fertilização in vitro, e teve diagnóstico de infertilidade.
Conforme a sentença, a irmã concordou em se submeter ao procedimento, renunciando previamente à possibilidade de vir a discutir, no futuro, a possível maternidade da criança. “A regra infralegal do anonimato, nesse contexto probatório, implica desproporcional limitação ao direito ao planejamento familiar de uma das autoras – no qual, como visto, se subsume o direito à utilização de técnicas de fecundação artificial –, obstando a ela, de modo irrazoável, a realização do sonho da maternidade”, conclui o juiz.
Em face da fundamentação, Ribeiro julgou procedente a ação, declarando o direito das autoras à realização da fertilização in vitro heteróloga sem a condicionante prevista na resolução do CFM, impondo ao Cremers a obrigação de não tomar providências contra tal procedimento. Ele concedeu a tutela de urgência tornando imediatos os efeitos da decisão. A sentença está sujeita ao reexame necessário no Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Pioneirismo paulista
Em junho de 2018, num caso similar, a 2ª Vara Cível Federal de São Paulo também afastou a regra administrativa do CFM e autorizou a fertilização de uma mulher com os óvulos cedidos pela irmã. A decisão da juíza federal Rosana Ferri proibiu o Conselho Regional de Medicina de São Paulo de mover processo ético-disciplinar contra os profissionais de saúde envolvidos no procedimento.
O parecer médico, anexado na inicial daquela ação, conclui que a doação de uma pessoa da família “seria a melhor, se não a única maneira de conseguir seu objetivo, e,não mais precisar se submeter ao tratamento que vem realizado há mais de um ano sem sucesso”. (Conjur)