Alunos retornando para a escola, reencontrando amigos e professores e trazendo histórias para contar sobre os dias que estiveram longe. Em outro momento, essa seria uma cena trivial para um início de semana na Escola Estadual de Ensino Médio Marçal Ramos, em Caraá. Mas, na segunda-feira (3/7), ela marcou a volta dos estudantes depois de duas semanas sem aulas em razão da destruição causada pelo ciclone extratropical que atingiu o Estado entre os dias 15 e 16 de junho.
Não era, portanto, um dia comum. “Tudo mudou, a gente valoriza cada detalhe agora. Um oi na chegada, um abraço, as mínimas coisas, que antes eram automáticas, agora são diferentes”, disse a professora e vice-diretora Sonia Fraga, ao falar sobre o reencontro com os alunos.
Nas últimas duas semanas, a comunidade escolar trabalhou na recuperação da escola, uma das mais afetadas pela enxurrada. O local, que chegou a ser inundado por um volume de água que passou de 1,80 metro de altura, foi cuidadosamente limpo e recuperado por professoras e funcionários, com apoio da Brigada Militar.
A Secretaria da Educação (Seduc) forneceu mais de 500 novos itens para mobiliar e equipar a Marçal Ramos, incluindo 320 cadeiras e classes escolares, duas geladeiras, dois freezers, fogão industrial e elétrico, bebedouros, computadores, armários e televisão, entre outros. Também estão sendo distribuídos kits completos de material escolar para todos os 420 alunos.Para receber os estudantes, a comunidade escolar organizou uma festa. Os professores, que há poucos dias manuseavam rodos e vassouras para eliminar a lama, agora serviam refrigerante, cachorro-quente, docinhos e algodão-doce. Tudo para proporcionar um dia de alegria e tentar afastar a angústia que abateu não só a escola, mas toda a cidade.
Até o clima, que se manteve chuvoso ou nublado durante boa parte dos últimos dias, colaborou com o momento. O dia de sol iluminava ainda mais o amarelo das paredes da escola e os sorrisos do reencontro. E eram muitos sorrisos entre as crianças que pulavam nos brinquedos infláveis e os adolescentes que jogavam pingue-pongue ou se reuniam em rodas, aproveitando os lanches e a presença dos amigos.
A solidariedade, que esteve presente em todos os momentos desde a enxurrada, também deu o tom da recepção. A alimentação, os brinquedos e a decoração resultaram de doações. As atrações que divertiram jovens e crianças também partiram de artistas voluntários.
Voluntariado, aliás, se tornou uma palavra comum em Caraá. Um dos alunos que estava no momento de reencontro com os colegas, Henrique Deitos, 15 anos, participou da limpeza da escola. “Vim ajudar na limpeza no quinto dia depois da enchente. E, nesta última semana, ajudei a organizar as salas”, contou. “Estudo aqui desde o quinto ano, então é quase uma casa para mim. Por isso foi muito triste ver como estava, com o muro caído, as salas cheias de barro. Mas agora estou feliz de ver que a escola parece até melhor do que era antes.”
Henrique também ajudou no posto de saúde e na igreja, movido pela gratidão. “Vi o jeito que estava Caraá depois da enxurrada. Rodei o município e vi todo o estrago. A minha casa não teve danos, então eu queria encontrar uma forma de agradecer por isso. A forma que encontrei foi ajudando”, explicou.
Para a estudante Taiele de Azevedo, 15 anos, a volta depois do ciclone vai ser marcada pela empatia. “Quando aconteceu, me assustei, porque não tínhamos comunicação. Eu não sabia como estava a maioria dos meus amigos, se estariam bem. Minha casa não foi atingida, mas vários amigos perderam muita coisa. Agora vamos voltar com a nossa rotina e com uma empatia verdadeira pela dor do outro”, afirma.
A jovem sentiu saudade dos colegas, dos professores e até de coisas simples que faziam parte da rotina na escola, como as partidas de pingue-pongue. A mesa, que atrai muitos estudantes nos intervalos, ficou preservada. “Achava que, como a água tinha levado até o muro, ela não teria resistido. Fiquei chateada porque gosto bastante, um passatempo que reúne um monte de gente. Foi bom voltar e ver que ela ainda está aqui”, comemorou, depois de algumas partidas.
Com um semblante animado e esperançoso, bastante diferente do que apresentava duas semanas atrás, a diretora Juliana Souza de Oliveira se movimentou o tempo inteiro na recepção. Por onde passava, trocava palavras carinhosas e abraços com os alunos que tanto desejou rever.
“Está tudo lindo. É muita felicidade ver a escola assim de novo. Nessa hora, vemos que todo o trabalho valeu a pena. A vontade é de estar em cada um dos espaços porque, aonde vamos, vemos alegria e ganhamos um abraço apertado deles. Estávamos com saudade, e ver eles aqui de novo não tem preço. Quero abraçar, beijar, perguntar como estão, é uma alegria que não cabe em mim”, contou.
O primeiro dia foi de festa para atenuar os efeitos do desastre que afetou grande parte dos alunos em casa. A ideia era fazer da escola um espaço onde eles pudessem esquecer de tudo por um momento, explicou a diretora. O próximo passo será uma etapa de acolhimento emocional. Depois, o processo de recuperação dos conteúdos perdidos.
“Hoje eles estão alegres, mas, se tocamos no assunto [perdas pela enxurrada], o semblante muda e começam as histórias. As feridas estão ali, não podemos esquecer”, lembrou Juliana.
O Núcleo de Cuidado e Bem-Estar Escolar da Seduc, em articulação com as equipes da rede municipal de assistência social e do curso de Psicologia da Universidade La Salle de Canoas e do Centro Universitário Cenecista de Osório (Unicnec), vem realizando atividades de escuta e apoio emocional com a comunidade de Caraá.
Psicólogos e assistentes sociais da Seduc fizeram visitas domiciliares para acolhimento da população e levantamento de questões de saúde mental para planejar ações continuadas. A equipe diretiva, os professores e funcionários da Escola Marçal Ramos, com a realização de Círculos de Construção de Paz (metodologia que executa encontros circulares em ambiente acolhedor e seguro), também tiveram apoio e orientação para que consigam receber da melhor maneira possível os estudantes. Para quarta-feira (5/7), estão previstas atividades diretas com os estudantes e os profissionais de saúde mental na escola.
“Os círculos de paz foram muito importantes para nos fortalecermos e agora conseguir passar isso para os alunos. Deu até uma coragem maior para atendê-los. Nesta semana, vamos trabalhar com eles ouvindo e acolhendo”, afirmou a diretora.
Pracinha renovada
Alguns pontos da escola ainda passam por reparos, como a sala que abriga a biblioteca. O piso, que era de madeira, ficou comprometido pela água e está sendo trocado.
Outro ambiente que também recebe atenção é a pracinha de madeira, que ficava nos fundos e foi transferida para a entrada. O serralheiro Aureovarlei da Cunha a restaura de forma voluntária. Ele vive em Caraá há dez anos e abraçou a comunidade neste momento difícil.
“Vim ajudar na limpeza e vi a pracinha coberta por uns 30 centímetros de lama. As professoras estavam preocupadas, achando que ia se perder, então me ofereci para desenterrar e trazer aqui para a frente, onde pega mais sol, e estou recuperando”, contou o profissional, que trabalha com construção e demolição há 20 anos e emprestou suas habilidades para restaurar o brinquedo. “Não fui atingido em quase nada, então comecei a ajudar o pessoal que estava ilhado, precisando de algum reparo, e agora colaboro aqui. Mas faria mesmo que tivesse sido atingido. Tenho saúde, posso fazer”, afirmou.
A mesma vontade de oferecer o seu melhor para a comunidade mobilizava a vice-diretora Sonia. Ela sofreu grandes perdas em casa, onde quase tudo se foi. Mesmo assim, na segunda-feira recebia os alunos com abraços apertados, sorrisos sinceros e muito amor. Sentimento que também dedica à Marçal Ramos, onde estudou quando menina e leciona há mais de 20 anos.
“Essa escola é minha segunda casa. É parte de mim e tenho muito orgulho daqui. Então, mesmo com tudo que vivemos, hoje estamos felizes, abraçando e recebendo cada um deles”, disse. Emocionada, Sonia transbordou o sentimento de esperança e recomeço, que contagiava o ambiente. “Essa escola é vida, é alegre, é linda. Somos uma família.”
Texto: Thamíris Mondin/Secom
Edição: Vitor Necchi/Secom