Uma horta no meio do concreto: pesquisa da UFRGS analisa a conciliação de contradições na agricultura urbana

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Uma horta comunitária escondida ao lado da escadaria Gen. João Manoel. Para acessar a Horta Coletiva da Formiga, você pode subir a escadaria pela Rua Fernando Machado ou descer pela Rua Duque de Caxias. Bem no coração do Centro Histórico de Porto Alegre, esse terreno íngreme está rodeado de prédios, trânsito e transeuntes que sobem ou descem a escadaria, historicamente utilizada por pessoas em situação de rua que buscam abrigo.

Repaginado, o acesso à horta agora tem os degraus coloridos e, para entrar, é só parar na concha e virar à esquerda (para quem sobe). A vista é bonita, calma, arborizada, com clima ameno por conta da sombra que faz à tarde e o local está mais seguro.

No imaginário popular, quando se fala em horta, logo surge à mente um terreno plano, canteiros repletos de alfaces, cenouras, temperos verdes, algumas árvores frutíferas, sem cercas e aberta. Ao chegar à Horta da Formiga, esse ideário cai por terra. Para ter acesso ao espaço é preciso abrir um cadeado, ingressar em um corredor estreito e caminhar por calçadas. O espaço, cedido para uso em contrato de comodato realizado entre o coletivo da Horta da Formiga e a família proprietária da área, foi objeto de estudo da doutora Ana Clara Aparecida Alves de Souza em tese defendida em março de 2019 junto ao Programa de Pós-Graduação em Administração da UFRGS (PPGA).

A linha de pesquisa de Ana foi Inovação, Tecnologia e Sustentabilidade. A ideia era descobrir como agentes protagonistas em uma horta urbana coletiva conciliam as contradições inerentes a esse campo social.

A tese A conciliação de contradições inerentes à prática coletiva da agricultura urbana aborda a agricultura urbana na contemporaneidade como um movimento complexo e multifacetado. Para a autora, cultivar uma horta em uma área urbana é muito mais que plantar e colher, é desenvolver um laboratório social. Em sua pesquisa, emergem como fatores fundamentais na defesa da agricultura urbana diversos aspectos: sustentabilidade, resiliência, resgate de laços comunitários, revitalização de espaços ociosos, público ou privados, reconexão com a natureza, cultivo de alimentos, terapias ocupacionais, dinâmicas recreativas e educacionais, tratamento de enfermidades por meio de plantas medicinais e até mesmo a descoberta de plantas alimentícias não convencionais.

A horta como um laboratório social. Foto: Rochele Zandavalli/Secom-UFRGS.

“A agricultura urbana é uma prática da agricultura nas cidades. Não é um fenômeno novo, mas na contemporaneidade tem alcançado visibilidade. Ela nasce, principalmente, com a migração de pessoas do campo para constituírem as cidades e pode ser configurada considerando múltiplas questões: sustentabilidade, resiliência, direito à cidade, alimentação, reconexão ou primeira conexão com a terra, entre outros”, explica ela.

Esse mecanismo complexo faz com que se envolvam áreas públicas ou privadas, coletivos organizados e a vontade de estar em contato com a terra faz com que a constituição de uma horta comunitária não seja uma tarefa tão simples assim. Entram em discussão outros pontos centrais que permeiam as cidades e que precisam ser enfrentados para construir essa conexão/reconexão com a terra. “Há pessoas que buscam esses espaços como uma fuga ou a lembrança de um passado; outras querem o primeiro contato com a terra, ou proporcionar aos filhos que saibam de onde vêm os alimentos e desfrutar um consumo orgânico. Do outro lado, estão tensionamentos próprios da cidade: a ocupação desses terrenos por pessoas em situação de rua que demandam moradia, moradores da vizinhança que possam ser contrários à atividade na horta. Ou seja, o fato de ocupar um terreno privado tem uma série de questões estruturais e sociais que antecedem”, diz a pesquisadora, que acompanhou por dois anos, in loco, a Horta da Formiga.

Mergulhada neste universo, Ana buscou compreender a dinâmica organizativa da Horta da Formiga, uma iniciativa de agricultura urbana coletiva, compreendendo a sua constituição e os seus engendramentos por meio de uma investigação participante. A questão central de tese justifica um estudo em Administração, uma vez que a intensão foi verificar como os atores protagonistas da horta conciliaram as contradições inerentes à vida social e ao movimento, garantindo que ele permaneça. “Minha pesquisa olhou para aquele grupo, que estava consciente dessas contradições, e viu como ele se mobilizou”, diz. Apoiada pela literatura, a pesquisadora aponta que a agricultura urbana pode ser pensada de uma maneira mais entusiasta ou de um ponto de vista mais crítico, que busca atender e responder a uma questão social ao mesmo tempo em que se contradiz. “Ficamos neste duplo movimento: a horta nasce dentro de uma estrutura social complexa e contraditória, preexistente, e cria ao mesmo tempo uma resposta a um problema urbano e a possibilidade de um processo de gentrificação . Essa é uma dupla faceta da agricultura urbana que precisa ser discutida”, salienta Ana.

Essa contradição é nítida pela necessidade de colocar um cadeado no portão de entrada da horta. São tensionamentos que acontecem no cotidiano do convívio social, inerentes a nossa estrutura, e que são questionados pela doutora. Assim, a Horta da Formiga é definida pela pesquisa como um campo social, na perspectiva de Pierre Bourdieu, em que se faz a análise relacional deste campo sem deixar de lado as relações de poder e dominação estabelecidas. “Há uma dinâmica social, e busquei identificar como se dá a conciliação de contradições. Acredito que o conhecimento científico existe para isso, para questionar, pois não se avança no conhecimento pela certeza, e sim pela dúvida. A horta mostrou que ela vai muito além daquele terreno: há uma série de questões de cidade que circulam ali e que precisam ser discutidas”, complementa a pesquisadora.

A acadêmica no debate do conflito social

A pesquisadora abre os portões do objeto de pesquisa. Foto: Rochele Zandavalli/Secom-UFRGS.

Contato com pessoas em situação de rua, dependentes químicos, enfrentamento ao tráfico, aceitação ou não de moradores do entorno, ocupação de um espaço urbano ocioso, entre outros conflitos, permearam a implantação da Horta da Formiga. Por meio de diálogo, doações, inserção das pessoas nos mutirões se estabeleceu uma relação saudável entre todos.

Pesquisas como a de Ana têm a capacidade de pensar esses espaços e levar contribuições para a sociedade. No caso da Horta da Formiga, foi possível elencar uma série de problematizações possíveis. “Temos que pensar numa perspectiva macro para entender o fenômeno; o pensamento científico serve para isso: eu vou para aquele movimento e penso. Não se trata de um padrão de horta perfeito, mas sim de um laboratório social de provocação e reflexão”, diz ela.

Nesses dois universos distintos que dialogam, há o fator agricultura urbana que vai além de plantar e colher, passando a assumir um papel social, comunitário, coletivo. A Administração se faz presente neste espaço nas formas organizativas do organismo social, mostrando à pesquisadora as problematizações presentes ali, os tensionamentos sociais. “A horta construiu a tese, e eu me transformei durante o processo, me construí enquanto cidadã e pesquisadora”, frisa.

Trazer esse debate para a UFRGS permite que se pense a Administração como fundamento das formas organizativas da vida social, que está em tudo, como, por exemplo, na administração da vida do sujeito. A principal contribuição da tese é pensar o movimento social na perspectiva organizacional e refletir sobre como são esses tensionamentos no movimento social e como as pessoas se organizam para responder uma problemática.

Para a doutora, é preciso que o pesquisador esteja aberto para ver o que o campo está sinalizando, qual a problemática e como pensar sobre aquilo. “Sigo na horta como voluntária e analiso de que maneira levar essa vivência para o meu âmbito acadêmico, tentando promover essa conexão: vida acadêmica e sujeito social”, finaliza Ana.

Para saber mais

Horta da Formiga: https://www.facebook.com/hortacoletivadaformiga/

Tese de Ana Clara Aparecida Alves de Souza: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/196059

Associação das Hortas Coletivas do Centro Histórico (AHCCH): https://www.facebook.com/hortascoletivasch/

Lei Estadual nº 15.222, de 28 de Agosto de 2018: Institui a Política Estadual de Agricultura Urbana e Periurbana no Estado do Rio Grande do Sul: http://extwprlegs1.fao.org/docs/pdf/bra184141.pdf

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